quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Crítica - Black Mirror: 3ª Temporada

Review Black Mirror 3ª Temporada


A tecnologia está cada vez mais presente em nossas vidas e em certa medida facilita muitas coisas. Por outro lado também traz em si uma série de problemas e questões de cunho ético, moral e existencial. A série Black Mirror trata exatamente do lado pouco saudável de nossa relação com a tecnologia através de seus episódios que funcionam como pequenos contos de horror e ficção científica contando histórias isoladas sobre os problemas que o abuso ou uso pouco ético da tecnologia trazem. Alguns SPOILERS são inevitáveis a partir deste ponto.

É interessante como cada episódio começa tentando criar uma sensação de normalidade, mostrando como não há nada aparentemente errado no modo como aquelas pessoas vivem. Aos poucos vai mostrando ao público as rachaduras em cada universo até o ponto em que nos damos conta que há algo terrivelmente errado acontecendo.

Os Episódios


O primeiro episódio, Nosedive, nos mostra uma distopia completamente governada pelas mídias sociais, nos quais as pessoas constantemente avaliam umas às outras e são essas avaliações que determinam o status social de cada um, bem como seu acesso à moradia, viagens e uma série de outras coisas. Nessa sociedade todos são forçosamente gentis uns com os outros, já que precisam de boas avaliações e tudo que fazem é para obter visualizações positivas em suas postagens.

O assustador em tudo isso é o quanto esse universo parece próprio de nossa própria realidade, com pessoas vivendo e fazendo coisas apenas para obterem seguidores e curtidas em rede sociais, vendendo uma falsa impressão de felicidade e sucesso para obter a aprovação de pessoas que praticamente nem conhecem direito. É uma crítica dolorida sobre o quanto vivemos demasiadamente em plataformas digitais que permitimos que isso vire nossa realidade e esquecemos que não passa de uma ilusão (e sim, eu percebo o paradoxo que é postar um texto como esse justamente em uma plataforma digital).

O segundo episódio, Playtest, é mais um conto de terror propriamente dito, se valendo a temática da "casa mal-assombrada". O jovem Cooper (Wyatt Russell, o Zook de Anjos da Lei 2) resolve aceitar um trabalho para testar um novo jogo de realidade virtual, mas os implantes que colocam em sua cabeça para estimular as sensações trazem efeitos mais assustadores e reais do que deveriam. O discorrer da trama nos faz questionar em muitos momentos se o que o personagem experimenta é real ou não e também traz algumas imagens bastante grotescas como a aranha gigante que o ataca em determinado momento.

Também pega carona na alienação provocada pelo tempo cada vez maior que passamos com videogames, principalmente com as possibilidades de deslocamento da realidade com os recém chegados "capacetes VR". Ao mesmo tempo, levanta a questão do que é exatamente realidade, afinal, se o "real" é aquilo que nossos sentidos captam, então a noção de realidade é um conceito muito mais fluido e menos objetivo do que normalmente se considera.

O terceiro episódio, Shut Up and Dance, é talvez o mais próximo do mundo real, no sentido que tem menos elementos fantásticos ou sci-fi que os demais dessa temporada. Um garoto retraído é chantageado por um grupo de trolls da internet que o filmam se masturbando através da webcam de seu computador (sempre tapem a webcam com um adesivo meninos e meninas). Além da tensão provocada pelas ordens que "eles" dão ao garoto, que vão escalonando em perigo e gravidade, temos a impactante reviravolta final (que se torna ainda mais desoladora pelo uso da canção Exit Music do Radiohead) com o meme da trollface e todas as informações são publicadas na internet, lembrando que nenhum segredo fica oculto na internet. O episódio serve como uma metáfora para o cyberbullying e como as brincadeiras perversas de trolls de internet realmente destroem vidas, ideias que acabam retornando no capítulo final da temporada, Hated in the Nation. Sim, algumas das vítimas dos trolls neste episódio são criminosos, como o pedófilo do fim (e fica em aberto a possibilidade do protagonista também ser), mas os hackers parecem mais interessados em extrair prazer de torturar psicológica e fisicamente seus alvos do que em levá-los às autoridades. 

San Junipero, quarto episódio da temporada, traz um pouco mais de leveza em relação aos episódios anteriores, ainda que continue lidando com questões bastante complexas e nem um pouco simples de serem resolvidas. No início parecemos estar diante de uma história passada nos anos oitenta. Acompanhamos Yorkie (Mackenzie Davis), uma jovem retraída que se apaixona pela festeira Kelly (Gugu Mbatha-Raw) na cidade de San Junipero. Aos poucos vemos como elas podem transitar entre décadas diferentes, nos induzindo a pensar que é um conto sobre viagem no tempo, mas a reviravolta é mais surpreendente ao trazer a noção de que o lugar é uma espécie de "céu" digital, no qual as consciências de pessoas mortas são depositadas para que vivam lá eternamente sem preocupações ou problemas.

O episódio dialoga com as noções sobre o que é realidade trazidas em Playtest, ao mesmo tempo que traz uma metáfora acerca da noção de que nada realmente morre na internet. Levanta também questões acerca da imortalidade ou de viver para sempre, afinal qual o sentido de continuar vivendo quando perdemos tudo que nos é importante? Uma pergunta que o diretor Jim Jarmusch já tinha levantado com o seu Amantes Eternos (2014).

Men Against Fire, penúltimo episódio da temporada, parece nos colocar em um futuro pós-apocalíptico no qual um vírus devastou parte da humanidade e os militares precisam eliminar os infectados. Aqui temos aquele que deve ser o revés mais impactante da temporada, quando descobrimos que os infectados eram uma espécie de "maquiagem digital" feita pelos implantes cibernéticos. Os monstros eram apenas pessoas normais e o comando militar fazia seus soldados os verem como criaturas, apenas para facilitarem seu trabalho. A cena em que o soldado Stripe (Malachi Kirby) é obrigado a rever tudo que fez sem a "maquiagem" sobre as criaturas é um momento extremamente aterrorizante conforme percebemos que ele é o real monstro da situação.

É um olhar sobre o distanciamento da guerra digital, com pessoas controlando drones a milhares de quilômetros de distância e os alvos deixam de ser pessoas para serem imagens em uma tela. A guerra virou uma espécie de video game e esse episódio mostra os extremos disso. A narrativa também analisa a típica retórica de guerra ou regimes excludentes, que trata de desumanizar seus inimigos para justificar seu extermínio. Afinal, matar outro ser humano é matar um semelhante, é matar a si mesmo, há uma série de implicações morais a se pensar ao eliminar um igual. Por outro lado, matar uma criatura, um monstro, um bicho que ameaça minha existência é muito mais fácil e assim reduzir grupos de indesejáveis a algo inferior a um ser humano é uma estratégia básica para justificar genocídio.

Se pensarmos nas declarações de políticos reacionários que associam determinadas etnias ou grupos sociais com elementos indesejáveis ou repreensíveis (como dizer que todo muçulmano é um terrorista ou todos os imigrantes são ladrões e estupradores), percebemos o quanto esse episódio está próximo do nosso mundo e o quanto a tecnologia apenas facilita que desumanizemos nossos oponentes.

Por fim, Hated in The Nation, episódio final da temporada, nos faz refletir sobre as ondas irracionais de ódio que são constantemente disseminadas digitalmente e as consequências disso. Na trama pessoas começam a morrer quando uma hashtag desejando suas mortes se tornam trending topics na internet. Nos lembra que muitas dessas ondas de ódio (na maioria das vezes desproporcionais às ações de seus alvos, quando não completamente injustificadas) realmente levam pessoas ao suicídio ou destroem suas vidas pessoais e profissionais. Também traz uma reflexão sobre o estado constante de vigilância tecnológica e como, no atual contexto, nossa privacidade é praticamente inexistente.

Assim sendo, ao longo de seus seis episódios, essa terceira temporada de Black Mirror traz reflexões impactantes e por vezes assustadoras sobre a nossa relação com a tecnologia. A série trata de temas complicados com cuidado e maturidade, evitando maniqueísmos e soluções fáceis, com muito do que é dito ao longo dos episódios reverberando em nossas mentes mesmo dias depois de termos terminado de assistir.


Nota: 9/10

Trailer:

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