segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Crítica - True Detective: 2ª Temporada

Análise Crítica - True Detective: 2ª Temporada

Review - True Detective: 2ª TemporadaAntes de mais nada: SPOILERS. Tratarei aqui sobre muito do que aconteceu nessa segunda temporada, portanto, sim, muitos SPOILERS a seguir. Se você se importa com esse tipo de coisa, melhor assistir os oito episódios e depois voltar aqui. De todo modo, vamos ao que interessa.

Depois da ótima primeira temporada, a série de antologia True Detective tinha uma tarefa difícil pela frente, criar uma nova história e novos personagens que fossem tão interessantes quando Marty (Woody Harrelson) e Rust (Matthew McConaughey) ao mesmo tempo em que alterava em grande medida o tom da narrativa. A primeira temporada bebia diretamente na fonte do mistério gótico, do horror lovercraftiano e especificamente dos contos de Robert Chambers (que foi uma das influências de H.P Lovercraft) envolvendo "o Rei de Amarelo". Já esta temporada parece mais diretamente ligada à ficção hard boiled e ao noir, especialmente a partir dos trabalhos de autores como Dashiell Hammett ou Raymond Chandler e, assim como a primeira temporada fez com Chambers, as referências pipocam a todo momento.

A fictícia Vinci retratada na série, um enorme deserto industrial tomado por corrupção transformado em cidade por megacorporações que visavam um governo e legislação que os favorecessem, parece remeter diretamente à Personville do romance Seara Vermelha de Hammett. As paisagens urbanas são cinzentas, tomadas por concreto, fumaça e sombras, mas não dão uma impressão de progresso e sim de desolação. Do mesmo modo, a máscara negra de pássaro usada pelo assassino de Ben Caspere (em especial o modo como ela é posicionada no banco do carro no primeiro episódio) parece remeter diretamente à estátua de O Falcão Maltês (1941). Os personagens são tipos endurecidos e atormentados por erros do passado, complexos de culpa e toda a sorte de trauma.

O crime aqui não é um fenômeno isolado, mas um verdadeiro "nó górdio" de conspirações e joguetes escusos, como acontece em À Beira do Abismo (1946). Deslindar o fios que conectam esses múltiplos esquemas acaba levando muito tempo, não apenas porque os crimes se misturam e se sobrepõem de um modo que é difícil isolar as variáveis de cada um, como também porque os detetives que os investigam sabem que estão envolvidos em algo muito grande, além de suas capacidades individuais, e não sabem em quem confiar ou para quem levar suas descobertas. Assim, a narrativa acaba sendo mais lenta, mais slow burn, como é tradicional neste tipo de narrativa, e esse ritmo pode desagradar quem esperava algo com a mesma cadência da primeira temporada.

Com isso não quero dizer que "quem não gostou, não entendeu", já que esta temporada teve sim alguns problemas na construção de seu mistério e dos personagens, mas muita gente embarcou na temporada esperando algo no mesmo tom e ritmo da primeira, sendo que a intenção do criador e roteirista Nic Pizzolatto era se distanciar disso.

A trama inicia a partir do misterioso assassinato do gestor público Ben Caspere que é deixado no meio da estrada sem os olhos e gera um problema de jurisdição que acaba unindo detetives de três departamentos diferentes, Ray Velcoro (Colin Farrell), Ani Bezzerides (Rachel McAdams) e Paul Woodrugh (Taylor Kitsch). Além deles há um quarto elemento interessado na resolução do crime, o gângster Frank Semyon (Vince Vaughn), para quem Ray ocasionalmente trabalha, que estava prestes a sair da ilegalidade com a compra de terrenos que seriam usados na construção de um corredor ferroviário pelo governo. O problema é que os contratos e dinheiro para compra e ambos sumiram com a morte do administrador, o que o deixou sem o dinheiro e sem as propriedades.

Como pudemos ver, temos praticamente quatro protagonistas, quase todos (a exceção de Ray e Frank) distantes uns dos outros e com seus próprios núcleos e redes de relacionamentos. Isso implica em gastar muito tempo para estabelecer e situar cada um deles e seus microcosmos, resultando em um volume grande de informações e explicações sendo despejadas incessantemente no espectador sem que ele seja capaz de dar conta de tantos personagens e possíveis tramas, tornando os dois primeiros episódios em narrativas truncadas, que parecem não querer seguir em frente. O problema desse excesso de exposição inicial irá repercutir a frente quando alguns arcos não conseguirem ressoar simplesmente porque sequer lembrávamos da existência de certos personagens e não nos importávamos com eles.

Um exemplo disso é quando Stan, um dos principais capangas de Frank, é assassinado de modo similar a Caspere e planta no gângster a ideia de que pode estar sendo traído por alguém em suas fileiras. O problema é que esse desenvolvimento falha em impactar porque não fazíamos a menor ideia de quem era Stan, já que apenas o vimos por poucos minutos e não sabíamos nada a seu respeito. Por causa disso, todo esse arco, inclusive a cena de Frank com o filho dele, que deveria ter um certo impacto emocional, não funciona.

O mesmo acontece com Paul que, ao contrário dos outros três personagens, aparentemente não possui nenhuma ligação pessoal com o crime ou as figuras que o gravitam. Assim, todo o investimento nele e sua recusa em aceitar a própria homossexualidade, que é até bem construído, parece deslocado da narrativa principal, embora todo seu tormento por viver como uma sombra incompleta de si mesmo seja coerente com o tom noir da série. Na verdade, o único elemento que o liga ao mistério principal (e que só aparece nos últimos episódios) é justamente aquele que é menos trabalhado, que é seu envolvimento passado com um grupo militar privado durante sua época de soldado, na qual fica subentendido que ele cometeu algo de muito grave.

Já que falei em personagens atormentados, preciso me deter um pouco sobre os outros dois detetives. Ani Bezzerides se apresenta como alguém emocionalmente fechada, que usa sua aparente agressividade para manter os outros distantes, seus problemas emocionais parecem vir de uma relação problemática com o pai e a comunidade alternativa em que foi criada e conforme a narrativa avança, vamos descobrindo indícios de abuso que justificam a postura sempre defensiva que a personagem tem.

Ray Velcoro não é apenas uma sombra de si mesmo, mas um zumbi, uma alma que foi condenada a vagar pelo mundo como punição por seus erros. Ele não é, no entanto, o seu típico policial corrupto, já que sua motivação por se envolver com Frank não foi ganância, mas um senso de gratidão por este ter lhe ajudado a se vingar do homem que estuprou sua mulher. Lógico que isso não foi o bastante para salvar seu casamento e Ray se afundou ainda mais em vícios e crime. Farrell o constrói como um cão vira-lata, solitário e desesperado por uma medida mínima de afeto (em especial do seu filho, que tragicamente pode ser do estuprador e não dele), mas que foi tão maltratado pela vida que rechaça qualquer negativa com uma desmedida agressividade.

E o fato que descobrimos mais a frente que ele matou o homem errado, destruindo seu casamento e se corrompendo a troco de nada, apenas amplia essa dimensão trágica e a percepção dele como alguém fadado a fracassar. Algo que fica claro no seu desfecho, quando ele tenta mandar uma última mensagem ao filho, mas o upload falha em uma cena de partir o coração enquanto ele ruma para próprio extermínio sem sequer ter o conforto de saber que suas últimas palavras de amor e carinho seriam ouvidas.

As cenas em que ele interage com outros personagens em um bar escuro e decrépito no qual uma cantora (Lera Lynn) parece sempre trazer canções que exprimem exatamente o que ele está sentindo dão um caráter quase que surrealista à narrativa, em especial na cena que divide com o pai depois de ser baleado. Isso, claro, não é uma crítica ou demérito, já que True Detective nunca mirou no realismo nem nessa nem na temporada anterior, na verdade é até satisfatório quando a série abraça sem medo a sua própria loucura.

Afinal as imagens produzidas pela série mais parecem um sonho ou delírio febril produzido pelas mentes torpes e maltratadas de seus personagens, resultando numa espécie de "realidade expandida" que mostra uma versão aumentada da realidade a partir da iconografia da narrativa policial. Isso não se reflete apenas nas imagens, mas nos diálogos, afinal, ninguém fala como Rust Cohle, Ray ou Frank, mas também ninguém fala como Sherlock Holmes, Sam Spade, Philip Marlowe ou mesmo Veronica Mars. O detetive iconoclasta e idiossincrático faz parte da poética do gênero, algo que faz parte do zeitgeist há mais de um século e não há nada de errado em remeter a essa tradição narrativa.

A investigação, apesar de relativamente lenta, vai aos poucos dando indícios de que o assassinato de Caspere não é tão simples quanto parece, conforme eles descobrem que ele estava envolvido em diversos esquemas, desde tráfico de pessoas para fins de prostituição, promoção de orgias para os poderosos (com direito a gravações para fins de chantagem) até o deliberado envenenamento de solo para viabilizar o tal corredor ferroviário, passando por um suspeito assalto a joalheria décadas atrás que deixou duas crianças órfãs. Cada nova descoberta parece cavar um buraco ainda mais fundo e a sensação de que não há fim para o crime, a corrupção e depravação com a qual os personagens estavam envolvidos, bem como uma ampliação cada vez maior da lista de suspeitos, já que praticamente todas as autoridades que aparecem na trama tem envolvimento com os delitos do gestor público.

Mesmo com o ritmo mais devagar há um manejo bastante hábil do jogo pista/recompensa, já que praticamente toda informação, mesmo que inicialmente marginal, acaba mais para frente se revelando importante e necessária para a resolução do crime e, deste modo, sentimos que nossa atenção valeu a pena. Tudo isso vai aos poucos aumentando a tensão e paranoia dos personagens (e consequentemente nossa), bem como a impressão de que ninguém quer que eles realmente decifrem tudo. Na verdade, a contratação do detetive pelos responsáveis apenas para turvar ainda mais as águas é também um expediente comum no noir, acontece em O Falcão Maltês (1941), quando a assassina do parceiro de Spade o contrata, em Chinatown (1974), quando uma atriz contratada pelo conspirador contrata Jack Gittes para que ele arme um flagra, e até mesmo no cartoon-noir Uma Cilada Para Roger Rabbit (1988), no qual o chefe de estúdio e co-conspirador contrata Ed Valiant para armar um flagra de modo semelhante ao de Chinatown.

Conforme descem nessa sombria toca de coelho, em especial a partir do quinto episódio, os detetives vão descobrindo que, apesar de tudo retornar a Caspere e envolvê-lo, os crimes não estão todos relacionados e que os envolvidos são tão numerosos e poderosos que mesmo com todas as descobertas e provas serão incapazes de atingi-los. O sentimento vai ampliando conforme a série vai chegando nos seus dois últimos episódios e quando a última tentativa deles em incriminar os envolvidos é frustrada no início do season finale, tudo se transforma em uma tensa corrida por sobrevivência, na qual eles tentarão obter o mínimo de retribuição que conseguirem antes de fugir. A cena do gravador escapulindo das mãos de Ray para ser pisoteada pela multidão na cena da estação de trem simboliza exatamente como eles estão lidando com forças tão superiores e com uma ordem tão grande de malícia, ganância e pecado que mesmo o acaso, a sorte e o destino estão contra eles. Tudo isso leva a clímax incrivelmente tenso no qual temos a sensação de que nenhum deles pode sair vivo.

Ao final, mesmo com a clara resolução do crime e das pistas para apoiar suas conclusões, não há nada fazer senão fugir ou morrer enquanto os poderosos por trás de tudo isso conseguem exatamente aquilo que querem. Seus segredos são soterrados, um novo prefeito é eleito em Vinci, o corredor ferroviário começa a ser construído. O crime, portanto, é um elemento estrutural daquela sociedade, é o crime que permite que os poderosos alcancem e mantenham o seu poder, é através de roubo, morte, chantagem, traição e perversão que fortunas são construídas e mesmo que compreendamos tudo isso, não há muito que possa ser feito, nos trazendo mais uma vez ao fatalismo típico do noir.

Esse fatalismo, aliás, é traduzido na escolha precisa da canção tema desta temporada, Nevermind, de Leonard Cohen. Aliás, os versos usados na abertura mudam a cada episódio, fazendo as letras sempre reverberarem (e nos prepararem) para o que será visto a seguir. Versos como "there's truth that lives/ And truth that dies/ I don't know wich/ So nevermind" reforçam o fatalismo de que em uma rede tão grande de intrigas é difícil conhecer a verdade, então melhor deixar para lá. O trecho "The war was lost/ The treaty signed/ I was not caught/ I crossed the line" parece antever que os personagens não irão vencer e precisarão fugir. Isso apenas demonstra o cuidado que o supervisor musical T-Bone Burnett tem ao selecionar as composições (originais ou não) que entrarão na série.

Mas há um personagem que ainda não abordei aqui. Se prestaram atenção, não falei nada sobre Frank. Provavelmente o personagem menos interessante dos quatro por não conseguir sair do lugar comum do "mafioso que quer virar honesto", além da típica preocupação com seu legado. No entanto, tenho a sensação que Frank está aqui mais para provar um ponto do que para ser um sujeito plenamente realizado. Este não é o de que "o crime não compensa", já que o fim diz que, sim, o crime compensa, desde que você já tenha dinheiro, poder e influência.

O ponto que Frank serve para provar é o ideal de um pleno liberalismo econômico meritocrático que traz em si a promessa de que um homem é capaz de ascender com seu próprio esforço e trabalho (o mito do self made man) não passa de uma cortina de fumaça, um engodo formatado pelos detentores do poder para manter todos os outros ocupados. Afinal, Frank trabalhou (de forma ilegal, mas praticamente todos os personagens atuam na ilegalidade), juntou seu dinheiro, fez tudo que os poderosos lhe pediram.No entanto, quando chegou a hora de ser recompensado e finalmente admitido nesta alta "casta" da sociedade, os mesmos poderosos que lhe prometeram fortuna puxaram seu tapete e o recolocaram em "seu devido lugar" como gângster, traficante e cafetão, deixando claro que o poder e a fortuna, não são acessíveis a qualquer um. Tanto, que é justamente o orgulho de Frank em "não aceitar seu lugar" que o leva à ruína em sua última cena.

Aos que não detêm o poder (ou que conhecem seu funcionamento), resta apenas a peleja brutal pela ínfima esperança de um lugar ao sol ou a fatalista realização de que isso é  inalcançável, sendo melhor se manter distante ou alheio a isso. Esse fatalismo fica evidente na ambígua cena final em que Ani dá todas as suas provas a um repórter antes de desaparecer para sempre. A fala de Ani de que "merecemos um mundo melhor" ecoa uma fala de Ray no início da temporada de que "temos o mundo que merecemos", pois para existir um mundo melhor, é preciso pessoas que estejam a altura disso. A resposta a estes questionamentos é inteligentemente deixada em aberto, afinal, se há ou não um possibilidade de reverter tudo isso, se é possível punir ou não essas pessoas, é uma decisão de cada um.

Mais do que a negação de um projeto de nação, o fim também parece apontar para o fracasso, simbólico e literal, deste tipo de herói hard boiled machão, já que todos os homem fracassam, deixando às mulheres (Ani, Jordan, Emily) a responsabilidade de dar prosseguimento a essa busca por "um mundo melhor" (ou não, depende de como enxergamos esse desfecho).

Esta segunda temporada de True Detective teve sua parcela de tropeços e claramente não está no mesmo patamar da temporada anterior, mas é um competente conto sobre as forças que manejam nossas estruturas de poder e como é ganância que movem e moldam as nações, bem como uma apaixonada celebração da iconografia do noir.

Nota: 8/10

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